OS INDÍGENAS EM JACAREPAGUÁ
- Ana Melo
- 30 de set.
- 4 min de leitura
Quem nunca fez uso de um chá de boldo para aliviar uma má digestão, ou “quebra pedra”, para eliminar pedras nos rins? Os chás caseiros, aos quais recorremos, são herança da medicina ancestral indígena que aprendemos com nossos avós e pais. Toda família tem aquela receita infalível, vinda da natureza e guardada como tesouro pessoal.
Há séculos, os indígenas usam chás, unguentos, fumegações, banhos e escarificações na pele, como forma de curar e purificar o sangue. Cronistas do século XVI relatam o quanto essa medicina era eficaz na cura dos europeus que aqui chegavam. Dando-lhes caju para curar o escorbuto, desenvolvido por conta da longa viagem pelo Atlântico, os indígenas provavam o conhecimento sobre a deficiência de vitamina C, causadora da doença, e que era encontrada em abundância na fruta.
A ciência ocidental prova, cada vez mais, a importância e a complexidade da medicina indígena. Hoje, num movimento de retorno ao que é natural, descobrimos, como se fosse novidade, aquilo que os indígenas fazem há séculos. Isso é fruto de um preconceito de que o que não está na farmácia é menor e, consequentemente, sem importância ou ineficaz.
Quem mora em Jacarepaguá de trinta anos pra cá, já conhece - ou ouviu falar - do que ficou popularmente conhecido como “a garrafada do Índio”. Para uma tosse que não cessa, uma dermatite incômoda, ou mesmo algo de cunho mais pessoal, recorria-se à tal garrafada, cada qual com uma finalidade específica. À medida que as beberagens tinham o efeito esperado, a fama de seu fabricante ia crescendo. E, assim, o pajé Yapuan ficou conhecido na região. Seu profundo conhecimento das plantas medicinais encontradas na mata, um saber ancestral que foi obtido através da tradição oral de seu povo, era um diferencial significativo para a população local, carente de opções para tratamento da saúde. Além de outras filiais, sua loja continua conhecida na Curicica.
Outra evidência da presença indígena neste território são as cerâmicas e cachimbos encontrados. Estudos arqueológicos, como o da pesquisadora Silvia Peixoto, revelaram um trânsito de mulheres tupinambás vindas de São Paulo para a região do Camorim, em visita aos parentes tupinambás que aqui viviam. Por volta de 1594, teriam chegado ao Camorim grupos de indígenas tupinambás, principalmente mulheres, fato atestado por cerâmicas desta etnia encontradas na região feitas com material local, mas com características dos tupinambás de São Vicente, São Paulo. Tais saberes tradicionais ainda se encontram vivos nas práticas artesanais realizadas por mulheres no Camorim.
As mulheres tupinambás tinham um papel fundamental no trabalho agrícola, na caça de formigas e peixes, assim como na preparação de cerâmicas, tanto utilitárias como ritualísticas (fig. 1). Hans Staden, um cronista alemão que esteve entre os tupinambás de Jacarepaguá, como prisioneiro, conta com detalhes a produção destas cerâmicas, o trabalho artístico dos grafismos e a forma de cozer os artefatos, seja na pedra ou em buracos no chão, com carvão por cima. Ele também relata a forma de preparo das bebidas fermentadas (chamadas de cauim), feitas de milho, frutas e mandioca. No preparo do cauim de mandioca, a raiz era cozida, mascada pelas mulheres e devolvida aos potes para fermentar por dois dias. Os tupinambás e outras etnias fabricam o cauim até hoje dessa forma. Acreditava-se que a saliva masculina deixava a bebida amarga e, por isso, somente
mulheres deveriam prepará-la. Observou também o alemão que essas bebidas eram mais utilizadas no retorno de guerras e nos rituais de antropofagia.

As mulheres tinham participação ativa na caça e nas guerras. Eram elas que carregavam todo o peso da caça e, nos conflitos, levavam as redes, a alimentação e também ficavam responsáveis por cuidar dos prisioneiros. Diante disso, e para o funcionamento da aldeia, o resguardo pós parto durava em média quatro dias. Era comum ver mulheres carregando seus filhos nas costas, amarrados com panos de algodão, colhendo mandioca ou preparando alimentos. As anciãs adquiriam o direito de participarem das decisões da aldeia,
debatidas entre os homens.
A liberdade conjugal também foi algo que surpreendeu os europeus. Apesar dos casamentos arranjados, eles praticavam a poligamia e, tanto o homem quanto a mulher, possuíam o direito de se separar e constituir novo matrimônio, o que era proibido na Europa
católica e protestante do século XVI.
Essas diferenças fizeram os europeus demonizarem as mulheres indígenas, desde sua nudez “sem pudor”, até o direito de decidirem o destino que dariam aos próprios corpos. Logo, tudo lhes causava estranheza, como o fato de as mulheres não guardarem resguardo e levarem seus filhos para o trabalho na lavoura, visto como desleixo e falta de amor maternal. O hábito de empurrarem seus ventres contra vigas de madeira, como forma de retornarem ao corpo que tinham antes da gravidez, era tido como brutalidade.
Todo o estranhamento do europeu com esse novo mundo, seja como prisioneiro - como o caso de Hans Staden - ou visitante - como no caso do cronista Jean de Léry - tornaram seus relatos repletos de ruídos entre o que acontecia e o que se observava. Dessa forma, as mulheres indígenas eram temidas, mas reconhecidas como atuantes nas sociedades tupinambás.
Desde a época colonial, as políticas públicas militam pelo apagamento da herança dos povos originários, destituindo-lhes de suas terras, calando suas falas e tirando o mérito de seus conhecimentos e de suas conquistas tecnológicas, ao tratá-las como sendo primitivas ou fruto de superstições ineficazes.

Hoje, na cidade do Rio de Janeiro, existem cerca de 6.000 indígenas vivendo na área metropolitana. São os indígenas urbanos, que enriquecem nossa cidade com conhecimentos vindos de várias partes do país. Entre eles, temos duas mulheres da etnia Anambé, que vieram do Pará e fazem sucesso com suas bonecas e com roupas personalizadas com grafismos indígenas. Luakan Anambé e Atyna Porã Brasil Anambé vivem em Jacarepaguá e comercializam seus produtos por todo Brasil.
A boneca Anaty, que na língua Anambé quer dizer menina, foi criada em homenagem à neta de Dona Luakan. O que era para ser somente um presente para a neta, virou sucesso nacional, encontrando espaço num vazio de representividade indígena nesse nicho. Atyna, filha de Luakan, continua o trabalho iniciado por sua mãe, revivendo a memória dos tupinambás que viveram durante séculos nesse território, e nos lembrando que “Jacarepaguá continua índio”.
