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QUILOMBO DO CAMORIM, QUANDO A HISTÓRIA SE REPETE

  • Foto do escritor: Isabor Dória
    Isabor Dória
  • 24 de out.
  • 3 min de leitura

O papel do RH diante das novas formas de escravidão.


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Em uma das pesquisas acadêmicas que participei recentemente, vivenciei algo que ultrapassou os limites da teoria e da análise científica. Enquanto estudávamos o processo de certificação do Quilombo do Camorim, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, descobrimos que parte do território, um espaço de valor histórico e simbólico, havia sido tomada pela especulação imobiliária durante o período das Olimpíadas.


Naquele local, onde séculos atrás existia um cemitério de pessoas escravizadas, ergueram-se prédios modernos, frutos de uma urbanização acelerada e pouco sensível às memórias que o solo guardava. O que mais nos impactou, no entanto, foi constatar que, no mesmo ano dessas construções, em 2016, denúncias apontaram trabalhadores atuando em condições análogas à escravidão nos canteiros de obras da região.


Como profissional de Recursos Humanos, essa descoberta me atravessou profundamente. É impossível não fazer um paralelo entre o passado e o presente, entre os que foram escravizados e os que, de outra forma, ainda são explorados sob novas roupagens. Muda o tempo, muda o uniforme, mas, em muitos casos, a lógica de desumanização permanece a mesma.


A pesquisa acadêmica revelou um dado histórico; mas, como ser humano e profissional de RH, o que ficou em mim foi uma inquietação: como é possível que, tantos anos depois, ainda tenhamos pessoas trabalhando em condições que negam sua dignidade?


Quando o trabalho deixa de ser instrumento de vida e passa a ser espaço de sofrimento, algo se perde, não apenas na economia, mas na nossa própria humanidade.


E é justamente por isso que o papel do RH vai muito além da gestão de processos e números. Nos cabe lembrar, todos os dias, que por trás de cada função existe uma vida, uma história e um território de pertencimento.


Preservar o valor humano é também uma forma de reparar o passado. E talvez o maior desafio da gestão de pessoas hoje seja este: não permitir que o que aconteceu naquele solo sagrado do Camorim continue acontecendo, sob outras formas, dentro e fora das organizações.


A chamada “escravidão moderna” é resultado de uma transformação social que começou ainda nos anos 1990, quando a política de bem-estar social cedeu espaço ao avanço do neoliberalismo.

Desde então, a lógica da competitividade e da redução de custos vem enfraquecendo as relações de trabalho, desvalorizando a mão de obra e tornando salários cada vez menos compatíveis com a dignidade humana.

Mas é preciso ir além da crítica às grandes corporações. Há também um impacto profundo sobre as pequenas e médias empresas, que muitas vezes se veem seduzidas por uma ideia forjada de liberdade econômica, uma promessa de autonomia e prosperidade que, na prática, não se concretiza.


Enquanto as multinacionais acumulam lucros recordes, amparadas por incentivos fiscais e políticas de mercado concentradoras, o pequeno empreendedor luta para sobreviver. Ele se

endivida, se desdobra e, paradoxalmente, acaba reproduzindo a mesma lógica de exploração da qual também é vítima.


É um ciclo cruel: o sistema faz com que todos se sintam livres, quando na verdade estão apenas cumprindo papéis diferentes dentro de uma estrutura que mantém o poder nas mesmas mãos.


As pequenas empresas são soterradas por leis fiscais elitistas, por uma competitividade desleal e por um Estado que se ausenta de sua responsabilidade social.


E assim, em um país que ainda pisa sobre um solo marcado pela escravidão, vemos repetir-se o mesmo enredo: poucos concentram riquezas, enquanto muitos sustentam o sistema com o próprio suor. A diferença é que, agora, a senzala é disfarçada de empreendedorismo e a corrente é feita de boletos, juros e jornadas sem fim.


Essa nova forma de escravidão não acorrenta corpos, mas aprisiona pessoas na necessidade, no medo e na falta de oportunidades reais. E é nesse ponto que o passado se revela assustadoramente presente.


Talvez a maior provocação que essa pesquisa me deixou seja esta: Será que realmente superamos a escravidão ou apenas aprendemos a disfarçá-la melhor?

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