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Jornal Abaixo Assinado

Indivíduos-de-esquina

Por Renan Cortez


A indiferença do jornaleiro em relação aos jornais. O daqui da praça seca nos atende com copo de cerveja e só vive falando sacanagem. Sujeito de respeito. Mora no bairro, seus amigos são daqui. Weberiano quebra a cara aqui. Trabalho nada racionalizado. Bermuda vagabunda, blusão vagabundo e aquele rosto de canalha de respeito. Essa semana fez um churrasco com dois aposentados aqui do prédio. Em frente à auto-escola, no meio da rua. Logo chegaram figuras clássicas do bairro: uma cigana que fala sozinha, o camelô que me viu criança, o pai de santo que ostenta um cordão enorme de ouro e trabalha na auto-escola com seus trajes religiosos, o ex-camelô que virou pastor e às vezes passa tardes falando de teologia com seus colegas e alguns mortais como eu, incapazes de expressar personalidades autênticas. Todos ostentam uma vagabundagem brilhante. São os indivíduos-de-esquina. Eles trabalham, mas estão o tempo inteiro na esquina. São como árvores.


Entre fumaças e sacanagens, chega o seu (esqueci o nome, mas não poderia deixar de mencionar o “seu”). Um louco aqui da praça. Passa os dias ameaçando os outros na rua. É um louco no renascimento. Todos gostam dele. Basta chegar e a algazarra começa. Às vezes ele fica com o grupo. Se comporta. E mesmo que não confessem, a objetividade da cena nos diz: ele é reconhecido, é também um deles, um indivíduo-de-esquina.

Semana passada o seu entrou na padaria. Aquela bagunça. Quem não conhece sente medo. Mas rapidamente as pessoas começam a alternar riso com compaixão. Uma senhora me disse: ” hoje ele estava pagando uma conta na caixa econômica. É louco nada. Tirou o boleto e pagou. Agora tá aí fazendo cena”. Começou então uma discussão sobre a loucura. É ou não é? Uma outra senhora logo confessou: eu sou doida, mas tomo remédio, me controlo. Ele é louco que não toma remédio, não se cuida.

Louco que não toma remédio.

O jornaleiro fazia o seu churrasco. O cheiro da carne invadiu a boticário, um acontecimento digno de nota. Do outro lado da rua, os farmacêuticos da pacheco colocaram um amplificador na rua para vender remédios ao som de Annita. O BRT passa. Estranho. Igual ao mega matte. Mas as lojas racionalizadas costumam fracassar na praça seca. “essas lojas aí, abrem, fecham, não dá certo”. Uma sabedoria repetida por muitos. Ouvi pela primeira vez na boca de Lucas, um traidor que foi morar no valqueire. O espírito do capitalismo não entra com facilidade nessa antiga terra de índios.

O BRT. Ele interrompe o som do ambiente. Atravessa, desafina. Não dá certo. Ele não está à altura do “seu” e da cigana solitária. Passa desajeitado igual um monstro. Vem e vai como se não se importasse com todos nós. Uma indiferença tremenda. Não é como o 284. O 284 é o bairro com rodas. Nos reconhecemos nele. A estação do brt é um terrível ambiente. Ambiente caracterizado pela passagem. Um indivíduo-de-esquina não fica ali. Ele não pode ficar. Ninguém fica. Não se cria raízes ali.

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