A HORA E A VEZ DE VILA AUTÓDROMO
Atualizado: 6 de set. de 2021
“Eu não tenho problema de morar ao lado da madame, mas se a madame tem problema de morar ao meu lado… Isso é um problema dela, pois não vou sair daqui não”, diz Maria da Penha Macena, moradora há 23 anos da Vila Autódromo.
O direito à moradia não se resume a apenas um teto e quatro paredes, mas ao direito de toda pessoa ter acesso a um lar. A Resolução da Assembleia Geral da ONU de 1966, subscrita pelo Brasil em 1992, defende o direito de todos à moradia adequada, caracterizada pelo custo acessível, pela disponibilidade de serviços e infraestrutura, acessibilidade, localização e adequação cultural da habitação. Inclui nesse conceito a segurança jurídica da posse, e proteção ao cidadão das ameaças e remoções forçadas. Esse direito é constantemente violado porque a terra agrega um valor monetário, ora estipulado pela possibilidade de produção de matéria prima e alimentos, ora pela especulação do seu uso futuro. E quanto mais esse território estive dotado de infraestrutura, mas ele se valoriza. A presença do trabalhador, morador ou vizinho, é considerada um item depreciativo ao cálculo do valor comercial da terra e por mais que outorgar título de posse à família de trabalhadores seja uma política pública, consolidar-las no território é um desafio social. “Esse problema da terra como um elemento de valor monetário é fundamental para entender a heroica luta de Vila Autódromo. As famílias que ficaram, que hoje é quase 50 famílias, defendem com dignidade o direito de estar ali nesse local” explica Célia Ravera, ex-subsecretária da Secretaria Estadual de Assuntos Fundiários, posteriormente presidente do Instituto Estadual de Terra e atualmente pesquisadora da Fiocruz.
Fruto da mistura de pessoas de diferentes origens, a Vila Autódromo se organizou enquanto comunidade formal a partir da criação da Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo em 1987. Com isto foi alcançado significativas melhorias na infraestrutura local: luz elétrica, água encanada, fossas sépticas e sumidouros, telefone, registro na Marinha e no Ibama para os 60 pescadores profissionais remanescentes. Em 1989 foram assentadas na área várias famílias oriundas da Comunidade Cardoso Fontes. Em 1994, a Secretaria de Estado de Assuntos Fundiários e Assentamentos Humanos assentou legalmente na Vila Autódromo mais 60 famílias e efetivou dezenas de títulos para os moradores. Três anos depois, em 1997, 104 famílias receberam titulação do Governo do Estado. Em 1998 os moradores da faixa marginal da Lagoa receberam Concessão de Uso Real por 99 anos da antiga Secretaria da Habitação e Assuntos Fundiários do RJ, publicada no D.O. de 31/12/98. Em 12/01/2005 a Câmara Municipal do Município do Rio de Janeiro decretou parte da comunidade Área de Especial Interesse Social por meio da Lei Complementar nº 74/2005. A permanência na área também está apoiada em vários dispositivos jurídicos — inclusive nos Termos Administrativos de Concessão de Uso concedidos pelo ITERJ (Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro).
Mesmo assim, as famílias sofrem constantes ameaças. O histórico de pressões reúne desde ameaças verbais e veiculação de notícias na mídia até marcações feitas nas residências e ações judiciais. Os argumentos e justificativas para a remoção da comunidade são variados, embora manifestamente inconsistentes. Em um primeiro momento, em 1992, a Prefeitura do Rio de Janeiro solicitou a remoção da mesma sob o argumento de que a comunidade causaria “dano estético e ambiental”. Na preparação dos Jogos Pan-Americanos de 2007, a comunidade resistiu a novas ofensivas para promover projetos imobiliários. Com a escolha do Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016 ressurge a ameaça da remoção compulsória. Segundo o Plano de Legado Urbano e Ambiental da Prefeitura, a área da Vila serviria para a ampliação das Avenidas Abelardo Bueno e Salvador Allende. Corroborando com os mega eventos, o Plano Estratégico de Governo 2009-2012, apresentado pelo prefeito Eduardo Paes em 5/12/2009, colocou entre suas metas a de “reduzir em 3,5% as áreas ocupadas por favelas no Rio”. A Vila Autódromo foi incluída na relação das 119 favelas a serem removidas integralmente até 2012, em função de “estarem em locais de risco de deslizamento ou inundação, de proteção ambiental ou destinados a logradouros públicos.”
Para fazer frente às agressões, no dia 10/02/2010, a comunidade se mobilizou em uma manifestação em frente à sede da Prefeitura. Ao receber suas lideranças, o prefeito afirmou que a remoção da Vila Autódromo é uma exigência do Comitê Olímpico Internacional, entretanto, acenou com a possibilidade de diálogo e da busca de alternativas. “Ele sempre falou cinicamente que quem quisesse ficar, ficaria. Mas apostava que ninguém iria ficar, pois eram tantas as pressões: máquinas entrando, corte de luz, corte de água, funcionários influenciando moradores individualmente…O prefeito não deu o direito das pessoas decidirem por si mesmas. A mercantilização da terra faz com que o trabalhador não possa morar em área que começa a ser valorizada. O povo de Vila Autódromo morou nesse lugar mais de duas gerações sem infraestrutura. Quando vêm a infraestrutura eles tem que sair porque a terra vale muito” lembra Célia.
Um mês depois, foi realizada reunião com a presença do Prefeito, do Secretário de Habitação, representantes da comunidade, Defensoria Pública e movimentos de luta contra as remoções. Eduardo Paes reafirmou sua disposição para dialogar, mas deixou claro seu plano de remover compulsoriamente a comunidade para local próximo. O Secretário de Habitação alegou que é impossível urbanizar a área da Vila Autódromo, porque está entre dois rios. Representantes da comunidade decidiram lutar pelo direito de permanecer na área. Em outra reunião,o secretário Especial da Rio 2016 deu outra razão para a remoção: “as condições de segurança que deveriam ser garantidas pela criação de uma área livre junto ao perímetro do Autódromo e a faixa marginal de proteção da Lagoa de Jacarepaguá”.Todos os argumentos da Prefeitura do Rio de Janeiro foram consistentemente refutados por um parecer elaborado pela equipe técnica de apoio à Defensoria Pública, que inclusive subsidiou uma notificação enviada ao Comitê Olímpico Internacional em meados de 2010.
Desde o inicio, a pesquisadora Célia Ravera participa desse processo e conta: “O que vejo nas assembleias que eu vou é uma transparência, uma discussão permanente. Eu acho isso extraordinariamente exemplar.” A prática comunitária de Vila Autódromo tem uma maturidade e se expressa numa organização que não precisa necessariamente da associação, ainda que a associação exista. “É uma organização que eu acho que não se funda em aparelhos e sim se funda nas decisões coletivas.Por isso que Vila Autódromo esta conseguindo enfrentar um inimigo desse poder que é o prefeito e a especulação imobiliária”, destaca ela.
Apenas no dia 28 de março de 2016, o prefeito Eduardo Paes apresentou o projeto de urbanização da comunidade. Os moradores reivindicam participação ativa na elaboração e execução do projeto. Nas reuniões, com a presença do sub prefeito da Barra Alex Costa e da arquiteta Marina, o governo insiste que é melhor todos saírem para que se realize as obras com mais eficácia. Após varias negativas, houve o consenso que apenas as casas localizadas na rua Nelson Piquet se mudar para que a obra possa ser iniciada. “Acho que a única coisa que garante a construção do Plano de Urbanização, de acordo com os interesses da comunidade, é a organização com a resistência e com cobrança, porque é um direito que se esta materializando. Mas não pode entregar nas mãos nem do prefeito, nem de ninguém. Precisa ficar nas mãos da comunidade e preservar para que esse direito se concretize. Por isso todo apoio a Vila Autódromo!” conclui Célia Ravera.
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